Os estudantes de Letras estão acostumados a ouvir falar inúmeras vezes, ao longo do curso, sobre o “sujeito nulo”. Mas, na gramática tradicional, simplesmente não existe esse conceito.
As classificações tradicionais falam sobre diversos tipos de sujeitos no português (simples, composto, oculto, desinencial, implícito, explícito, determinado, indeterminado, até mesmo inexistente), mas não sobre sujeito nulo.
A que corresponde, então, o “sujeito nulo” de que tanto fala a linguística? Todos os sujeitos nulos são iguais? Que diferenças há entre sujeitos ocultos, indeterminados e inexistentes?
Para entender os vários tipos de sujeito nulos na gramática tradicional, precisamos falar sobre os conceitos de referencialidade e identificabilidade e sobre a diferença entre referente e antecedente.
A classificação tradicional
Na classificação da tradição gramatical do português, há cinco tipos de sujeitos, quando consideramos o modo como estes se realizam na sentença:
(i) sujeito simples.
(ii) sujeito composto.
(iii) sujeito oculto (às vezes, chamado implícito ou desinencial).
(iv) sujeito indeterminado.
(v) sujeito inexistente (às vezes, denominado indiretamente apenas como oração sem sujeito).
Todos os outros tipos de sujeitos são apenas variações destes cinco.
Por exemplo, algumas gramáticas falam de “sujeitos determinados” versus “indeterminados”. Nessa divisão, os sujeitos determinados não são um sexto tipo de sujeito. É apenas uma forma de opor os sujeitos indeterminados (o quarto da lista) aos três anteriores a eles.
Para entender melhor esses cinco tipos, podemos agrupá-los em dois conjuntos maiores:
(i) os casos em que o sujeito aparece realizado explicitamente na oração, ou seja, quando há alguma palavra ou expressão, de fato, na função de sujeito.
(ii) os casos em que o sujeito não está explicitado na oração, ou seja, não há nenhuma palavra ou expressão realizando visivelmente a função do sujeito.
No primeiro grupo, temos os sujeitos simples e os compostos, como em: “Raimundo acendeu as velas”, “Os olhos dela luziram de sagacidade”, “Luiz e Estela caminharam juntos pelo jardim”, “Eu e ela acordamos muito tarde”.
Falaremos mais detalhadamente sobre os sujeitos realizados em outro texto. No texto de hoje, focaremos no segundo grupo de tipos de sujeitos, que reúnem os sujeitos ocultos, inexistentes e indeterminados, como nos exemplos abaixo:
(1) __ Acordei muito tarde hoje. [oculto]
(2) __ Choveu a tarde toda. [inexistente]
(3) __ Cancelaram o concurso. [indeterminado]
(4) __ Precisa-se de auxiliar de pedreiro. [indeterminado]
Nos exemplos, de (1) a (4), a posição que deveria ser ocupada pelo sujeito está vazia, como eu deixo claro através do “__” antes dos verbos.
Grosso modo, aquilo que chamamos de “sujeito nulo” na linguística corresponde a esses três tipos de sujeitos da gramática tradicional: sujeitos ocultos, inexistentes e indeterminados.
Já os sujeitos “não-nulos” ou “realizados” são os demais tipos, os que a gramática tradicional subclassifica em sujeitos simples e compostos.
Mas, se em todos os casos de sujeitos “nulos”, temos a ausência de uma palavra ou expressão para realizar explicitamente o sujeito, qual é a diferença entre eles?
Duas diferenças
O que difere sujeitos ocultos, inexistentes e indeterminados? São duas as propriedades que os diferenciam:
(i) a referencialidade.
(ii) e a identificação.
A referencialidade diferencia os sujeitos ocultos e indeterminados dos inexistentes, como na ilustração abaixo.
Já a identificabilidade diferencia os sujeitos ocultos e os indeterminados, como na ilustração abaixo:
A referencialidade diz respeito ao mundo (real ou imaginário) externo à linguagem. Um elemento linguístico possui um referente quando tal elemento significa ou aponta para algum ser (ou seres) externo à própria linguagem.
No exemplo em (5), o substantivo “Raimundo” tem como referente uma pessoa, um ser humano, um ser no mundo (real ou imaginário).
(5) Raimundo acendeu as velas.
A mesma coisa, aliás, também acontece com “as velas” na função de objeto direto ainda em (5). Esta expressão tem como referente aqueles objetos que servem para iluminar ou para colocar em bolos de aniversário.
Da mesma forma, em (6), o pronome “eu” tem um referente, que, no caso desse pronome, será sempre o próprio autor da frase.
(6) Eu acordei tarde.
Mas (5) e (6) são casos de sujeitos realizados explicitamente. E quanto aos sujeitos não realizados, como em (1)-(4)? A mesma coisa ocorre com os sujeitos ocultos e os indeterminados, mas não com os inexistentes. Vejamos.
Referencialidade: sujeitos ocultos e indeterminados X inexistentes
No exemplo (1), repetido abaixo em (7), temos um vazio no lugar do sujeito, mas esse vazio não é uma ausência total de informação.
Esse vazio aponta para algum ser no mundo, corresponde ao falante. É como se houve um pronome “eu” invisível na sentença.
(7) __ Acordei muito tarde hoje.
Neste caso, a terminação verbal “-ei” nos ajuda a saber que tal verbo se refere ao falante. Por isso, algumas gramáticas falam de “sujeito desinencial”.
Mas isso ocorre da mesma forma com qualquer pessoa verbal:
(8) __ Acordei muito tarde hoje. __ Acordaste muito tarde hoje. __ Acordou muito tarde hoje. __ Acordamos muito tarde hoje. __ Acordastes muito tarde hoje. __ Acordaram muito tarde hoje.
Em todos esses casos em (8), o vazio sempre corresponde a algum ser no mundo (real ou imaginário), que é um participante da ação verbal. E, nessas frases, esse elemento controla a concordância verbal, mesmo não aparecendo explicitamente na oração. Por isso — por controlar a concordância — sabemos que ele é o sujeito.
Isso também acontece nos exemplo (3) e (4), repetidos abaixo, como (9) e (10).
O vazio em (9) se refere a algum ser no mundo que corresponde a um participante do evento expresso pelo verbo. Há uma pessoa ou conjunto de pessoas que “cancelaram o concurso”, mesmo que não saibamos dizer quem é/são.
(9) __ Cancelaram o concurso.
(10) __ Precisa-se de auxiliar de pedreiro.
Da mesma forma, em (10), a posição vazia corresponde a algum ser no mundo que é quem “precisa de auxiliar de pedreiro”.
Por outro lado…
A mesma coisa não acontece com os chamados sujeitos inexistentes.
Quando temos verbos como “chover”, “nevar”, trovejar”, em frases como (11), a posição vazia de sujeito não corresponde a nenhum ser no mundo. Não há um participante do evento que corresponde a tal sujeito.
(11) __ Choveu muito ontem. / __ Nevou a semana inteira em Gramado. / __ Trovejou muito durante a chuva. / __ Houve muitos problemas durante a investigação.
Isso pode ser visto pelo fato de que não podemos inserir um pronome como “ele” em tais exemplos. As sentenças não ficam boas. (Na edição 2, falamos sobre esse tipo de sujeito sendo expresso explicitamente em inglês e em português).
Em suma, o sujeito “vazio” ou nulo…
com referente no mundo (real ou imaginário) —> sujeito oculto ou sujeito indeterminado.
sem um referente no mundo (real ou imaginário) —> sujeito inexistente.
Em linguística, chamamos de “sujeitos nulos referenciais” X “sujeitos nulos não-referenciais”.
Identificabilidade: sujeitos ocultos
A outra característica que diferencia os sujeitos nulos na gramática tradicional é a possibilidade de identificarmos o tal referente.
A simples percepção de um há um referente para a posição vazia do sujeito não implica que tenhamos condições de identificar qual é esse referente.
Há situações em que o referente é identificável plenamente a partir da desinência verbal. Por exemplo, quando o verbo está conjugado na primeira pessoa do singular, o referente do sujeito só pode ser o próprio falante, como em “Acordei cedo”.
Mas, quando o verbo está na terceira pessoa, a situação se complica. A simples existência de uma desinência verbal indicando a pessoa gramatical não implica a identificação do referente.
Precisamos de informações do contexto linguístico e situacional para identificar o sujeito.
No diálogo abaixo, fica claro que, na resposta, o vazio na posição de sujeito do verbo na terceira pessoa tem como referente o mesmo ser no mundo que é referente da palavra “João”.
A: “João terminou a faculdade?”
B: “__ Terminou.”
Aqui, um cuidado:
Nesse tipo de exemplo, é muito comum os professores dizerem que “João” é o sujeito das duas frases. Mas isso não é verdade!
A palavra “João” é o sujeito da primeira frase, dita pelo interlocutor A. Mas a palavra “João” simplesmente não está presente na segunda frase, na frase do interlocutor B.
Na frase B, temos um sujeito oculto. O que acontece nesse diálogo é que a palavra “João” na frase de A serve como antecedente para o sujeito nulo (oculto) na frase de B, indicando, assim, qual é o referente.
E é exatamente por isso que consideramos este um caso de sujeito oculto.
Antecedente é um elemento linguístico que vem antes de outro elemento e que serve de pista para a referência deste.
Referente é um ser no mundo (real ou imaginário) para o qual um elemento linguístico aponta.
Mas e quando — de propósito — não dá para identificar o referente sujeito?
Identificabilidade: sujeitos indeterminados
A situação se complica quando temos um sujeito “vazio” ou nulo de terceira pessoa do plural.
Nós podemos usar esses sujeitos nulos de duas formas distintas:
em situações em que o próprio contexto indica qual é o referente.
ou em situações em que o referente é ou desconhecido ou omitido de propósito.
Vejamos uma frase como (12).
(12) Assaltaram um banco.
Esta frase tem um sujeito nulo referencial. Mas se trata de um sujeito oculto ou de sujeito indeterminado? Depende do modo como a frase for utilizada.
Em (13), temos um sujeito oculto, pois o contexto fornece um antecedente (“os suspeitos”), que explicita o referente dos verbos seguintes. Assim, os sujeitos nulos dos verbos “falsificaram”, “assaltaram” e “atiraram” são sujeitos ocultos.
(13) Os suspeitos cometeram vários crimes. __ Falsificaram documentos. __ Assaltaram um banco. __ Atiraram num policial.
Também teríamos um caso de sujeito oculto mesmo se não tivéssemos um contexto com um antecedente, mas se, por exemplo, o falante apontasse para um conjunto de pessoas enquanto falasse a frase em (12).
Porém, em outro contexto em que não haja um antecedente nem outra forma de indicar a referência para esse sujeito nulo, essa sentença seria usada com o propósito de relatar o evento, mas não identificar o sujeito, seja por desconhecimento, seja por omissão proposital, como em (14).
(14) Está havendo alguma confusão no bairro. Parece que __ assaltaram um banco.
Temos, então, um sujeito nulo do tipo referencial, mas cuja referência é indeterminada. Há algum ser no mundo (real ou imaginário) que corresponde ao sujeito de “assaltaram um banco”, mas este referente não é identificado.
A mesma coisa acontece no exemplo em (3), “Cancelaram o concurso”. Outro caso de sujeito indeterminado.
Algo semelhante também acontece no exemplo em (4), repetido em (15), quando temos um verbo na terceira pessoa do singular, mas acompanhado por um pronome “se”.
(15) __ Precisa-se de auxiliar de pedreiro.
Trata-se de outra forma de realizar um sujeito indeterminado: a terceira pessoa do singular combinada com o pronome “se”, que aqui é chamado, por isso, de “índice de indeterminação do sujeito”.
Mas essa segunda forma de fazer indeterminação do sujeito só é possível quando o verbo não é transitivo direto. Se tivermos um objeto direto, este passa a agir como se fosse o novo sujeito da sentença, resultando num caso de sujeito realizado (simples ou composto), numa voz passiva dita “sintética”.
Mas isso já é um assunto para outro texto.
Em resumo
Referencialidade:
sujeitos nulos referenciais: ocultos e indeterminados.
sujeitos nulos não-referenciais: inexistentes.
Identificabilidade:
sujeitos nulos referenciais identificáveis: ocultos.
sujeitos nulos referenciais não-identificáveis: indeterminados.
Curiosidade linguística
Em algumas línguas, os casos de sujeito nulo são bem mais reduzidos. Sobre o inglês, por exemplo, sempre se fala da ausência de sujeito nulo com verbos como “to rain” (‘chover’), em que é necessário o uso do pronome expletivo “it” para exercer a função de sujeito, ainda que esse “it” não seja um participante no evento de chover.
Mas pouco se fala sobre os casos de indeterminação do sujeito em inglês, em que acontece o mesmo tipo de fenômeno.
Ora, se o inglês tem um uso muito limitado de sujeito nulo, como expressar indeterminação de sujeito nessa língua, já que a indeterminação é feita por sujeito nulo em português?
Não dá para simplesmente usar “it”, pois esse “it” seria interpretado ou como um pronome sem nenhuma referência ou como uma referência a um objeto inanimado ou animal, mas, na maioria dos casos, os sujeitos indeterminados são humanos.
Como o inglês resolve isso? Usando um outro tipo de pronome expletivo para expressar a indeterminação. Mas tal pronome não é o “it”, mas sim “one”.
Assim, no famoso meme baseado em uma cena de Senhor dos Anéis, o personagem Boromir diz “One does not simply walk into Mordor”, com “one” realizando a função semântica de agente de “walk” (‘caminhar’) e a função sintática de sujeito. Mas é interpretado como um sujeito indeterminado.
Um vídeo do meu canal
Outros materiais:
Amazon: Livros que traduzidos por mim.
PDFs de acesso livre no Patreon “Linguística”:
Roteiros sobre Sintaxe básica: verbos e argumentos.
Para membros do canal do Youtube:
Carta linguística. 18 de maio, anno Domini 2025. Edição 15.
Como citar este texto:
CAVALCANTE, Rerisson. Para entender sujeito oculto, indeterminado e inexistente. Carta Linguística, v. 16, Salvador, 02 de junho de 2025. Disponível em: [ https://cartalinguistica.substack.com/p/sujeito-oculto-indeterminado-inexistente ]. Acesso em XX mês 20XX.
Que aula!
Obrigado por compartilhar seu conhecimento.
Vou salvar para ler novamente e compartilhar.
Uma coisinha: acho que, no momento de fazer a reprodução do meme sobre a fala de Boromir, ocorreu um acréscimo de uma letra — 'e' — junto ao 'not'. Ficou assim no seu texto: 'One does note simply walk into Mordor'