No texto anterior, citei algumas formas como a linguística pode ajudar no ensino de gramática. Eu já tinha planejado qual seria o segundo texto, em continuação direta àquele. Mas…
… um comentário de uma leitora mudou os meus planos.
A dúvida dela nos dá oportunidade para ilustrar como conhecimentos de linguística podem ajudar a lidar com questões feitas pelos alunos na sala de aula.
Escreve a leitora:
“… como professora de inglês, vejo muitos alunos, e principalmente adultos, terem dificuldade de assimilar o motivo de ter que usar o pronome 'it', já que no português, neste caso, podemos omitir o sujeito. Mas como explicar isso para o aluno? (…)
O que me chama a atenção é que isso é uma duvida puramente intelectual por parte dos alunos. Eles entenderam o fato bruto, mas querem saber o porquê dele.
Como explicar a necessidade deste “it”, sem precisar dar aos alunos um curso avançado de teoria sintática?
Antes de tudo: a diversidade das línguas
O estudante de língua estrangeira deve, logo de início, se acostumar à ideia de que aprender uma língua não é apenas aprender outras palavras, com outras pronúncias, mas é também aprender maneiras diferentes de dizer as coisas.
Às vezes, maneiras muito diferentes.
Isso pode parecer óbvio para você e eu, que já sabemos outra língua, que já somos professores, estamos acostumados a lidar com questões de português, de inglês etc.
Mas você ficaria surpreso como isso não é dada óbvio para boa parte dos estudantes.
Mostrar isso aos alunos é uma tarefa que o professor de língua estrangeira deve acrescentar ao seu trabalho desde o início.
Os alunos não precisam virar linguistas, plenamente conscientes de todos os detalhes gramaticais da língua estrangeira. Mas eles devem se acostumar com a ideia de que outras línguas podem se organizar de modo bem diferente do português.
Aliás, mesmo o professor de português pode fazer isso e se beneficiar disso!
A comparação com outras línguas pode despertar a curiosidade sobre o próprio português. Isso mostra aos alunos que estudar a gramática do português pode ajudá-los mais à frente quando forem aprender outras línguas.
Use o próprio português
Então, o inglês usa “it” com “rain” e em outros contextos em que o português não usa nada.
Como explicar esse fato a alunos curiosos, que não ficam satisfeitos apenas como “porque sim”?
Antes de tudo, é preciso mostrar a eles que isso não é uma esquisitice do inglês, mas uma tendência que existe em praticamente todas as línguas, mesmo que se manifeste de modo diferente em cada uma delas.
Para começar, você pode apontar como o próprio português, embora não use um pronome como sujeito de “chover”, age como se esse verbo tivesse sim um sujeito.
Nós conjugamos “chover” na terceira pessoa, quando vamos usar esse verbo numa sentença com tempo. Dizemos: “choveu ontem”, “choveu muito”, “chove muito no inverno”.
Mesmo quando usamos um verbo auxiliar com “chover”, nós conjugamos tal auxiliar, como se houvesse um sujeito: “está chovendo”, “estava chovendo” “vai chover”, “tinha chovido”, “pode chover”, “podia chover”.
Por que “choveu”?
Uma propriedade geral das línguas humanas é que orações que expressam eventos no tempo precisam ter um sujeito.
Mesmo quando não há um agente de uma ação, mesmo quando não há um “ser do qual se fala”, é preciso que as orações funcionem como se estivessem falando sobre um sujeito.
Tanto é assim que boa parte dos linguistas acredita que em “choveu” existe sim um pronome na função de sujeito (puramente sintático, não semântico) de “chover”. Só que é um pronome não pronunciado.
Algumas línguas conseguem deixar esse sujeito puramente formal não-pronunciado, representado apenas na mente do falante. Outras precisam pronunciar esse sujeito de alguma forma. Mas a tendência é exatamente a mesma.
Outros casos em português
Você também pode mostrar aos alunos que essa tendência das línguas é tão forte que, mesmo em português, nós, às vezes, forçamos a barra e tratamos como se fossem sujeitos coisas que não são (ou não deveriam ser) sujeitos.
É o caso de “houveram problemas”.
Pela gramática tradicional, isso é um erro de português, pois “haver” deveria ficar no singular: “houve problemas”. Trata-se de outro caso de oração sem sujeito, assim como “choveu”.
Mas, então, por que é tão recorrente as pessoas colocarem esse “haver” no plural?
Porque orações finitas tendem a precisar de sujeito em todas as línguas. E, então, as pessoas pegam o objeto direto (no caso, “problemas”) e o tratam como se fosse sujeito.
Trata-se de um fenômeno cognitivo muito conhecido pelos cientistas, chamado: “não tem tu, vai tu mesmo!”.
A curiosidade dos alunos
Este tipo de dificuldade mostra que a visão pedagógica de que se deve ensinar língua estrangeira por uma metodologia baseada exclusivamente no uso, na interação, sem nenhum conteúdo explicativo, não é suficiente.
É claro que precisamos enfatizar o uso, mas as pessoas continuam humanas. E seres humanos são curiosos. E uma das tarefas da educação é estimular a curiosidade intelectual dos nossos alunos.
Antes de ir embora, não se esqueça de responder a enquete ao final.
Um livro recomendado:
Uma curiosidade linguística:
Em russo, a forma de dizer “chove” ou “choveu” é bem diferente do português ou do inglês. Não há um verbo específico significando “chover”.
O russo usa o verbo “idi” [идти] (‘ir’) na 3ª pessoa do singular, combinado com o substantivo dôjt [дождь] (‘chuva’), como sujeito pós-verbal:
idiôt dozht: literalmente, “vai chuva”.
shol dozht: literalmente, “foi chuva”.
Um vídeo do meu canal:
Uma ferramenta:
Esse portal de cursos pode interessar a vocês. Um dos cursos é sobre ensino de inglês no contexto escolar. Vale a pena dar uma olhada no conteúdo programático.
Enquete
Carta linguística. 18 de novembro de 2024. Edição 2.
Como citar este texto:
CAVALCANTE, Rerisson. “Isso chove, professora?” Como explicar sujeitos estranhos em inglês (e em português). Carta Linguística, Salvador, 18 de novembro de 2024. Disponível em: [ https://cartalinguistica.substack.com/p/isso-chove-sujeitos-estranhos-ingles ]. Acesso em XX mês 20XX.
Gostaria de deixar um agradecimento por trazer o tema pra newsletter, professor :)
Achei pertinente salientar que o ensino da língua estrangeira não pode ser apenas baseado em uso e sem explicações. Claro, não precisamos martirizar os alunos com a linguística pura e formal, mas ela de fato pode auxiliar e muito nas questões pedagógicas na sala de aula. Não sabia também, que no russo as coisas funcionavam dessa forma. Sempre interessante essa troca que todos nós temos por aqui :)
Acredito que ensinar um pouco sobre papéis temáticos nas aulas de L1 nas escolas poderia ajudar muito os alunos também. Claro, tudo isso muito adaptado aos anos escolares. Inclusive, isso é algo proponho na minha monografia agora no final do ano. Meu trabalho é sobre como a linguística formal pode auxiliar no ensino da L1 e L2, neste caso, na explicação de como os verbos impessoais e expletivos funcionam e quais papéis temáticos estes saturam. Também deixo um plano de aula como sugestão. A questão que levantei foi exatamente a de não excluir a linguística da gramática tradicional e não tratá-la como inimiga. Também levantei a questão do professor estar preparado para levar essas questões para a sala de aula, pois os cursos de sintaxe do ensino superior nem sempre são profundos, principalmente nas universidades particulares. Estou esperando ser aprovado e gostaria de deixar meu enorme agradecimento para você aqui e também dizer que lembrei de deixar um espacinho para ti nos meus agradecimentos na monografia. De verdade! :)
Obrigada sempre! Amo seus conteúdos!
Abraços. Já estou ansiosa para a próxima newsletter!!!!
Estava comentando outro dia como eu senti falta de uma edição nova dessa Newsletter na segunda passada. Hoje eu corri pra ver!