Quem é estudante de Letras sabe disso muito bem. Você não aprende gramática no curso de Letras.
Pior: você mal tem aulas de gramática ao longo do curso. Ao menos, não do tipo de gramática que o futuro professor de português irá precisar no dia a dia da sua profissão.
Nas aulas do curso
Nas aulas de linguística, a perspectiva adotada é mais teórica ou descritiva. O objetivo é formar um “linguista júnior”, não um professor de português ou de língua estrangeira.
E ainda há os diversos ataques à “gramática tradicional”, pintada como uma grande vilã a ser combatida pelo curso de Letras.
Já nas aulas supostamente voltadas para educação, a perspectiva muitas vezes é apenas falar mal da “educação tradicional”, do capitalismo, da sociedade, do cristianismo, do professor como figura de autoridade e “detentor do conhecimento” etc.
Nada disso ajuda a quem vai ter que dar aula de português e de gramática no dia a dia.
O linguista e o professor
Eu sou um linguista descritivo e teórico.
Eu adoro tentar descobrir, nas línguas, propriedades que ninguém observou antes ou tentar encontrar explicações mais adequadas para fenômenos já conhecidos. Gosto de falar sobre parâmetro do sujeito nulo, inatismo linguístico, modalidade epistêmica, focalização e referencialidade.
Tudo isso é necessário para o desenvolvimento da ciência, para o conhecimento mais profundo das línguas e da linguagem, mas os cursos de Letras também precisam formar os futuros professores de português (e de línguas estrangeiras).
Para isso, é preciso dar a eles os instrumentos necessários para o ensino de gramática na perspectiva dita “tradicional”. É essa a gramática que a sociedade espera dos falantes e escritores cultos, letrados.
O que falta?
Não me entendam mal. Nós podemos e devemos enriquecer a perspectiva gramatical tradicional com os conhecimentos recentes da linguística moderna, mas enriquecer não é ignorar, tripudiar nem jogar tudo fora.
É preciso que, em matéria de educação, a linguística se coloque à serviço da educação, não o contrário.
O primeiro passo é pararmos de ver isso como uma competição entre a tradição gramatical e a linguística.
A gramática não é algo que os linguistas precisam vencer, derrotar, para substituir por algo pretensamente melhor, que eles nem sabem ainda o que deve ser.
Uma boa teoria linguística não necessariamente é uma boa abordagem educacional, porque as expectativas sociais quanto aos usos da língua muitas vezes não coincidem com as atitudes dos cientistas interessados na descrição linguística.
Mas podemos e devemos nos perguntar:
Em que a descrição e a teoria linguística podem ajudar os futuros professores de português, sem dizermos simplesmente “largue a gramática e ensine linguística”?
E eu acredito que a linguística pode sim ajudar bastante.
Como a linguística pode ajudar o professor?
Para começar, há quatro pontos em que os estudos linguísticos podem ajudar o professor de língua:
Os conceitos da linguística podem ajudar o futuro professor a compreender melhor e de modo mais profundo os conteúdos da gramática tradicional.
As descrições de novos fenômenos linguísticos podem ajudar os professores a entender como é a língua real de seus alunos e a entender por que eles cometem os tipos de erros que cometem.
Também podem ajudar o professor a prever quais os tipos de dificuldades que eles enfrentarão ao estudarem gramática tradicional e a se antecipar a eles.
A linguística comparativa pode ajudar a despertar a curiosidade intelectual dos alunos. Por exemplo, se eles gostam de cultura japonesa, diferenças entre o português e o japonês podem atrair a atenção deles para o tópico gramatical da sua aula.
Nos próximos textos, falaremos mais sobre linguística e ensino de gramática.
Uma curiosidade linguística:
A maioria das línguas românicas possui artigos que precedem o substantivo. O romeno, porém, possui artigos definidos que são pospostos ao substantivos e que se parecem com sufixos. Exemplos:
em “băiatul” (‘o menino’): -ul é o artigo masculino singular.
em “băieții” (‘os meninos’): -ii é o artigo masculino plural.
Mas os artigos indefinidos antecedem o substantivos, assim como nas demais línguas românicas:
“un băiat” (‘um menino’): un é o artigo indefinido singular.
“niște băieți” (‘uns meninos’): niste é o artigo indefinido plural.
Um livro recomendado:
Para começar a entender a importância de gramática no ensino de língua portuguesa:
Um vídeo do meu canal:
Uma ferramenta:
Acho que todo estudante de Letras deveria saber sobre esse aplicativo. Nele, você pode agendar aulas com professores nativos de inúmeras línguas, para treinar conversação. Ou pode oferecer aulas, inclusive de português para estrangeiros.
Carta linguística. 04 de novembro, anno Domini 2024. Edição 1.
Como citar este texto:
CAVALCANTE, Rerisson. Você não aprende gramática no curso de Letras. Carta Linguística, Salvador, 04 de novembro de 2024. Disponível em: [ https://cartalinguistica.substack.com/p/voce-nao-aprende-gramatica-curso-letras ]. Acesso em XX mês 20XX.
Muito legal a sua colocação, professor. Atualmente estou fazendo minha monografia sobre como a linguística poderia ajudar em novos conteúdos nas aulas de língua pátria e estrangeira. No caso, concordo plenamente em não abandonar a gramática normativa, muito pelo contrário; devemos usar e abusar dela, mas levar o aluno a compreender de onde aquilo vem, os motivos daquilo acontecer. Estou usando, no caso, exemplo do expletivo 'it' em inglês, pois como professora de inglês, vejo muitos alunos e principalmente adultos, terem dificuldade de assimilar o motivo de ter que usar o pronome 'it', já que no português, neste caso, podemos omitir o sujeito. Mas como explicar isso para o aluno? Esse é o meu ponto. Talvez, usar a linguística na sala de aula como uma "curiosidade" desde o 6° ano... Explicar de onde a linguagem vem, com materiais lúdicos... Talvez um cérebro para pintar na aula de português/língua estrangeira para o aluno ter a noção que a gramática dele está ali e que tudo o que ele vai aprender sobre aquilo que ele já adquiriu, está presente no cérebro... E explicar um pouquinho disso...Enfim... Concordo plenamente com seu ponto de vista; a linguística deve somar no aprendizado e não dividir! Acho que ter o senso de 'self', fazer o aluno observador de sua língua pode ajudar, inclusive, no aprendizado de segundas línguas!
Sim, é verdade. Sinto falta disso.